domingo, 27 de junho de 2010

Introdução

Chama-me a atenção, nos dias presentes, a maneira como alguns indivíduos se relacionam com suas crenças e com as dos outros. Estou me referindo àqueles que não respeitam o direito alheio de pensar, em matéria de religião, de maneira diferente da sua e, por causa disso, são capazes de cometer agressões de qualquer natureza. Ataques a instituições religiosas, ofensas ou desqualificações à fé e às práticas religiosas, supostamente realizados por adeptos de outras igrejas ou instituições, vêm ocorrendo com alguma freqüência. Vivemos, presentemente, as discussões em torno da intolerância religiosa, muito oportuna para se lidar com situações deste tipo. Hoje, o Estado manifesta a intenção de garantir liberdade religiosa às pessoas, mas nem sempre foi assim. Muitas vezes, este se arvorou o direito de regular e fiscalizar as crenças, quando não o papel de interventor, praticamente querendo determinar aos cidadãos esta ou aquela religião.
Quando vamos pesquisar restrições, controles, intervenções enfrentadas pelos adeptos do Espiritismo[1] temos em mente que o “Estado” é composto por pessoas com interesses específicos, conflitantes entre si e que, em um determinado momento, detém o poder. Pessoas que, em função de seus interesses de classe, podem assumir atitudes que afetam a vida de grupos minoritários. Em nossa História, passamos por duas ditaduras longas, épocas de restrições dos direitos civis e muito sofrimento para os que as viveram. Se não bastasse, como teremos oportunidade de acompanhar, esses mecanismos de controle e repressão estatais estiveram presentes também em momentos considerados democráticos. Falar, portanto, de uma experiência, dentre várias existentes, de perseguições aos espíritas no passado, é para mim, manter a atenção para que atitudes semelhantes não tornem a ocorrer nos nossos tempos.
Meu interesse pelo tema começou a surgir a partir de minha atuação no Movimento Espírita, que se dá desde finais dos anos 1990. Pontualmente, neste meio, ouvia dizer sobre certas dificuldades vividas pelos espíritas, especificamente no governo Getúlio Vargas, sem se precisar, exatamente, em qual período. Alguns relatavam situações vividas por pessoas, parentes ou conhecidos, fichadas em órgãos da polícia, nesta época. No Centro Espírita Amor, Caridade e Esperança, de Botafogo, fundado em 1° de Setembro de 1942, pude perceber que a memória destes tempos difíceis é preservada ainda hoje. No site da instituição[2], constam referências bem específicas ao período que será coberto pelo presente trabalho. Falam da obrigatoriedade do registro dos médiuns em livros com informações pessoais e fotos, além de atestados médicos comprovando saúde física e mental. Exigências apontadas como indicadoras de tempos mais difíceis para os espíritas. No Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor de Benfica, fundado em 1° de Setembro de 1934, também preservam a memória deste tempo, quando funcionava, então, na Praça XV. Em seu site, teve-se a preocupação de ressaltar uma mudança de endereço, no ano de 1941, por conta do fechamento da instituição pela Polícia. Além disso, referem-se a Portarias policiais que objetivavam controlar e reprimir as atividades desenvolvidas pelos espíritas na cidade. [3]
Mas, a possibilidade de pesquisar a experiência histórica dos adeptos da Doutrina Espírita, começou a se concretizar durante a disciplina de Métodos e Técnicas de Pesquisa em História (METEC), no Curso de Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Naquele momento, a intenção era compreender o momento inicial do Espiritismo, quando esta chegou e se consolidou no Brasil, no século XIX, especificamente no Rio de Janeiro, buscando os conflitos que poderiam ter surgido com setores do Catolicismo ou mesmo do Estado. No entanto, a referência da professora Laura Antunes Maciel, na época desta disciplina, de que no acervo dos setores da polícia política do Arquivo Público do Rio de Janeiro existia material sobre os espíritas, despertou-me curiosidade e me lembrou aqueles relatos, esparsos, que estava acostumado a ouvir nos centros espíritas. Por sugestão desta, e aceso pela vontade de conhecer mais uma experiência que não tem muita visibilidade histórica, mas que sobrevive e circula mais pelas lembranças e relatos de alguns, resolvi investir no tema.
Inicialmente, comecei a pesquisa bem devagar, durante o ano de 2008. No site do Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro (CEERJ) fiz, mensalmente, o levantamento de instituições cujas datas de fundação ocorreram nos períodos de restrição de liberdade de culto comentados nos centros – “o governo Getúlio Vargas” – ou mesmo anteriores a ele. Objetivava ter uma noção, incompleta que fosse, do número de Centros Espíritas existentes na cidade que fossem agregados a então Liga Espírita do Brasil, entidade federativa de caráter nacional, a fim de avaliar o número dos que poderiam ter vivido essa experiência, bem como sobre sua localização na cidade. Desejava entrar em contato com algumas delas, solicitando-lhes permissão para pesquisar nos seus acervos, atas de reuniões de Diretoria, de Assembléias Gerais, consultar os números do periódico Reformador que dispusessem, além de arquivos de correspondências e até mensagens psicografadas a respeito do assunto.
Concomitante a este esforço, busquei contato com a Federação Espírita Brasileira, sendo que fui informado que a Biblioteca de Obras Raras, localizada em Brasília, estava em obras, o que impossibilitou o acesso ao acervo da instituição. Por conta disso, as informações sobre a Federação Espírita Brasileira se deram mediante as leituras da obra do antropólogo Emerson Giumbelli, de Sinuê Miguel e de Sylvia Damazio. Eventualmente, às edições de Reformador, o periódico oficial da FEB, disponíveis nos acervos da Biblioteca Nacional e ao livro Organização Federativa do Espiritismo, editado pela própria FEB em 1947.
Parte da pesquisa foi realizada em dois Centros Espíritas. No Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor, tive a oportunidade de ler o livro de Atas de Reuniões de Diretoria, do período compreendido entre 06/10/1938 e 08/07/1947. Acessei também dois livros de Atas de Assembléias Gerais de sócios, um do período de 17/07/1936 à 01/08/1938 e o outro de 14/06/1936 à 04/08/1949. Além destes, consultei um Livro de Registro dos médiuns da instituição, onde constavam, além das fotos, informações como: nome, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, filiação, estado civil, profissão, endereços do local de exercício da profissão e de residência, além de um último campo destinado às observações, onde só mencionavam as idades das pessoas com mais de 60 anos.
Nos livros das Assembléias Gerais, observei a referência à presença de um representante do Estado, identificado como da Delegacia de Polícia de Ordem Política e Social, acompanhando as reuniões, além das exigências de se providenciar licença para a realização do encontro. Que tipos de constrangimentos tal presença poderia causar? Como os espíritas lidavam com ela? Como eram registradas as dificuldades vividas por estes sujeitos sociais nos seus documentos, sob o olhar fiscalizador de um agente policial? Será que durante o período sempre participara das reuniões? As licenças para reuniões seriam sempre solicitadas? No caso dos participantes do Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor sempre a solicitaram e a documentação menciona ainda o responsável pela liberação da licença, chamado Serafim Braga, chefe de Seção citado nas fontes disponíveis no APERJ.
Estes livros igualmente mencionavam um periódico chamado A Vanguarda, que fora escolhido como órgão oficial da instituição. Dedicaria maior espaço aos espíritas? Infelizmente seu acesso não está disponibilizado no acervo da Biblioteca Nacional. Fui informado que, por questões de espaço este acervo fora transferido para um prédio anexo, localizado na Praça Mauá e que, em função disso, não estaria organizado, dependendo de um projeto para sua organização, o que não tinha prazo para acontecer.
Os livros de Atas de Reuniões de Diretoria igualmente mencionavam as dificuldades que foram sendo colocadas, por parte das autoridades, para a manutenção e o funcionamento da instituição. No entanto, como nestas não notamos referências à presença do representante do Estado, os assuntos eram debatidos com um pouco menos de timidez. Ainda assim, estes livros que registravam reuniões fazem menções muito ligeiras, às vezes pouco claras, implícitas, das situações desconfortáveis que viveram. Será que este material sofria verificações das autoridades? Como estas dificuldades eram tratadas a nível de diretoria, onde não havia outros associados presentes?
As muitas referências a correspondências da Liga Espírita do Brasil, com orientações quanto às Portarias e determinações estatais, instigaram-me a procurar o Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro (CEERJ) a fim de verificarmos a possibilidade de pesquisar no seu acervo. Com a liberação concedida por sua diretoria, comecei a travar contato com um material disperso pela instituição, mal conservado e desorganizado, porém de valor significativo. Do contato e leitura destes materiais novas perguntas foram surgindo: Como teria atuado a Liga Espírita? Como foi sua relação com esses aparatos repressores? Teria se restringido a orientações aos Centros Espíritas ou agido em outras frentes? De que maneira sofreu o problema e o que fez para sobreviver?
Neste acervo, tive acesso a dois livros de Registros de Instituições agregadas, um datado de 31 de Dezembro de 1942, sendo o 4° livro aberto para esse fim (conforme o termo de abertura) e o outro de Dezembro de 1957, sendo o 5° livro. Estes contêm a data do vínculo da instituição à Liga e um breve histórico, quase nunca preenchido, a não ser com a informação de permanência de vínculo e pela referência à suspensão das atividades de alguns Centros em função da Portaria do Chefe de Polícia, de Setembro de 1942, que fazia uma série de exigências para o funcionamento. Através deste material é possível ter noção do volume de procura por parte dos centros espíritas para adesão à Liga, da quantidade de reuniões que estes Centros desenvolviam semanalmente, bem como de sua localização na cidade. Além disso, fornece pistas para termos alguma idéia do tempo que levaram para conseguir retomar suas atividades, quando foram constrangidos pelas autoridades policiais a fechar suas portas.
Deparei-me, também, com alguns textos avulsos em algumas pastas. Um deles, o da Portaria 8.363 do Chefe de Polícia, datada de 22 de Setembro de 1942, dando conta das exigências que deveriam cumprir as instituições para manterem seu funcionamento. Encontramos, também, num recorte da Revista Espírita do Brasil, de Maio de 1945, uma referência a uma Portaria deste ano, sem a referência ao seu número, esta dando conta do cancelamento de uma anterior, de 1943, permitindo o livre funcionamento dos Centros Espíritas. Através delas, consegui conhecer um pouco dos argumentos justificadores do controle que se pretendia impor aos espíritas, bem como pude avaliar o nível de dificuldades colocadas por elas, para a manutenção das atividades das instituições. Encontrei recortes de jornais O Correio da Manhã, de 04 de Julho de 1943 e 11 de Agosto de 1943, bem como um artigo de Reformador, de Abril de 1983, que mencionam o caso de uma senhora que fora presa em flagrante, fazendo gestos e aplicando passes. Ainda no acervo do CEERJ encontramos alguns processos de agregação de instituições onde constava, ou não, a menção ao registro destas na polícia, bem como a necessidade expressa de que isto ocorresse, defendida por alguns diretores da então Liga Espírita do Brasil. Este registro na Polícia seria determinante para a aceitação da instituição postulante?
No CPDOC da Fundação Getúlio Vargas encontrei, no acervo de Filinto Müller, chefe de polícia do DF, documentos sobre instituições espíritas. Localizei entre os materiais um volumoso relatório, elaborado pelo Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais, intitulado “As forças religiosas no Brasil, do ponto de vista de suas influências políticas e econômicas”, de 02 de Dezembro de 1938. Estava organizado da seguinte forma: Considerações gerais, Assistência social, Medicina espírita, Farmácias e herbanários, Depoimento do decano dos espíritas brasileiros e, por fim, a relação de alguns centros espíritas. 
 Segundo esse Serviço, os espíritas não representariam, naquele “momento”, um perigo para o Estado. Entretanto, poderiam vir a ser em outras ocasiões, como a palavra sugere. Se não representavam perigo até então, o que teria mudado na visão das autoridades policiais, a justificar as Portarias que se seguiram e a fiscalização mais intensa sobre espíritas e suas instituições? No CPDOC/FGV nos deparamos, também, com alguns materiais digitalizados. Uma carta a Getúlio Vargas, do Centro Família Espírita Fé, de 24 de Janeiro de 1938, com uma mensagem sobre a personalidade do presidente, além de dar conta de suas atividades, que podem dar pistas da maneira escolhida por alguns espíritas para se relacionarem com o poder.
O acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) foi, sem dúvidas, o mais “perturbador” para a investigação, uma vez que supúnhamos que as perseguições aos espíritas tivessem cessado com uma portaria do Chefe de Polícia em 1945. Entretanto, as fontes da Listagem Resumida dos Setores da Polícia Política, esquematizadas em Dossiês, mostram que necessidade de autorizações do Distrito Policial correspondente, bem como da Delegacia de Costumes e Diversões para abertura e funcionamento de Centros espíritas continuou para além deste período de “redemocratização”. Além disso, o suposto passado político dos diretores poderia obstar o funcionamento da instituição, havendo a exigência de afastamento do suspeito para autorização das atividades da instituição postulante. Obtive autorização da diretoria do Centro Espírita Amor, Caridade e Esperança, localizado atualmente em Botafogo, para pesquisar em seu acervo. Encontrei em seus livros de Atas de Reuniões de Diretoria e o de Assembléias Gerais informações sobre o processo de legalização para funcionamento da instituição junto às autoridades policiais. Numa relação de nomes dos novos médiuns da instituição, pude perceber quem eram essas pessoas, suas atividades profissionais, nacionalidades, faixa etária e estado civil, ainda que não dispusesse de fotografias. Além disso, o seu Livro de Registro de Médiuns, traz as mesmas informações do que encontrei no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor, e serviram para dar noção de quem eram os espíritas nesses centros naquele momento. Neste livro, além disso, constavam os atestados médicos de seus médiuns, em atendimento às exigências formuladas pela Portaria 8.363, de 22 de Setembro de 1942. Havia disponíveis, também, alguns recortes de jornais, como o Diário da Noite de alguns meses de 1943, que permitiram avaliar mobilizações em torno da Portaria 10.194, de 10 de Outubro de 1943, elemento importante para o presente trabalho, pois se trata da última que oficialmente impôs restrições às atividades dos espíritas. Além disso, por meio de outros recortes do Diário de Notícias de 1937 e 1943, O Globo e Mundo Espírita, pude acompanhar alguns processos e prisões de médiuns e a atuação do promotor de justiça que atuou nos casos.
Se o acervo do APERJ já havia me colocado um elemento perturbador – a continuidade de medidas policiais sobre os espíritas na década de 1950 – no Centro Espírita Amor, Caridade e Esperança encontrei algo que me surpreendeu ainda mais. Um ofício da Delegacia de Costumes e Diversões, em sua Sub Seção de Repressão a Entorpecentes, datado de 5 de Janeiro de 1963 e dirigido a este Centro, que estipulava horário de encerramento para as atividades da instituição. A partir daí, continuei a leitura dos livros de Atas de Reuniões de Diretoria e Assembléias Gerais do Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor e encontrei uma referência apontando que o Departamento Federal de Segurança Pública estaria exercendo severa fiscalização aos Centros espíritas em 1966, o que eu nunca imaginei. Aliás, mesmo entre os espíritas não ouvi nada a respeito sobre dificuldades para manter em funcionamento os centros nesta década.
Procurei no Arquivo Nacional os materiais produzidos pela 1ª Delegacia Auxiliar, responsável pela fiscalização dos centros espíritas, segundo a Portaria policial 8.363, provavelmente de 22 de Setembro de 1942, mas não encontrei esse Fundo. Visitei então o Museu da Polícia Civil, na expectativa de levantar alguma informação sobre o acervo dela. O servidor público que me atendeu disse que também não tinha idéia do que fora feito com os materiais desta Delegacia.   
A partir do apanhado de nomes de Centros Espíritas que obtive no site do CEERJ, tentei contato por email com outros Centros Espíritas – tais como o Cristófilos, de Botafogo, a Sociedade Espírita Jorge, de Vila Isabel –, que também me autorizaram a pesquisar em seus acervos. Porém, em função do tempo gasto nesses contatos fiquei impossibilitado de incluí-los na pesquisa porque já redigia o trabalho. Certamente teria sido enriquecedor para o trabalho travar contato com a diversidade de experiências de outras instituições espíritas, principalmente daquelas situadas em áreas mais afastadas do centro da cidade. Entretanto, confesso que as dificuldades de inteirar-me dos materiais, através da leitura, não seriam pequenas. Não sei se conseguiria dar conta da tarefa, pelas questões de tempo que um Trabalho de Conclusão de Curso demanda. Certamente que ao considerar as possibilidades de continuidade da pesquisa e desdobramento deste trabalho, a idéia de percorrer os Centros espíritas se mantém.
A pesquisa realizada prendeu-se às décadas de 1930 e 1940 por conta da maior oferta de materiais, bem como porque iniciei o levantamento por este período, supondo que o controle e a repressão às atividades dos espíritas na cidade do Rio de Janeiro estivesse limitada ao período da ditadura de Getúlio Vargas. Muito cedo a pesquisa desmentiu esta suposição. Dessa forma, fiz questão de tratar do assunto, na medida das poucas referências encontradas para os períodos posteriores, até a década de 1960.
Não compartilho o interesse de fazer História de qualquer tipo de representação, aos moldes dos que geralmente são apresentados nos trabalhos de História Cultural. Penso que muitas vezes estaciona-se no campo das idéias, não se verificam como estas operaram entre os homens nem quais suas conseqüências concretas. Parece-me uma História sem vida, sem pessoas, que flutua no etéreo. Situo, então, o presente trabalho na História Social, procurando analisar a situação vivida pelos sujeitos sociais envolvidos de uma maneira global, sem hierarquizações entre o cultural, o político e o econômico, exatamente por entendermos que ninguém compartimenta sua vida desta maneira, de acordo com as formulações de Maria do Pilar Vieira, Maria do Rosário Peixoto e Yara Khoury.[4]
Procurei resgatar uma história com personagens pouco conhecidos, sem o destaque ou a projeção que se costuma observar nas versões oficiais. Pessoas que não foram idealizadas, nem tomadas por heróis valorosos, mas como seres humanos com sentimentos contraditórios, que sentiam medo, mas que mostraram coragem também. Pessoas que tiveram que decidir suas escolhas no calor do momento que viviam e foram capazes de grande entrega moral às causas que viveram e, ao mesmo tempo, de defender seus pontos de vista e suas escolhas custasse o que fosse. Capazes até de desistir. Penso a história
“como toda experiência humana entendida sempre como experiência de classe que é de luta, e valorizar a natureza política dessa luta, significa considerar então que a história real é construída por homens reais, vivendo relações de dominação e subordinação em todas as dimensões do social, daí resultando processos de dominação e resistência.” [5]

            A pesquisa não nasceu de nenhum esquema pré-definido. Não houve hipóteses. Parti de algumas constatações e questionamentos iniciais e à medida que desenvolvia a pesquisa, as questões iam se elaborando e reelaborando. Trabalhei, inicialmente, com uma única certeza: os espíritas sofreram perseguições de aparatos policiais nas décadas de 1930 e 1940. Não sabia mais que isto. Penso até que este desconhecimento serviu-me para agir menos condicionado por marcações temporais ou mesmo clichês, ainda que, enquanto espírita, tenha ouvido alguns, como os desafios na consolidação da Doutrina Espírita no Brasil, em fins do século XIX e as perseguições no governo de Getúlio Vargas. A partir das questões novas que iam surgindo, a pesquisa apontava os passos seguintes, que nos traziam novas indagações. Qualquer teoria pronta poderia gerar “vícios” na minha análise, na aceitação de referenciais exteriores aos fornecidos pelos sujeitos que viveram a situação. Concordo com Adalberto Marson quando afirma que se deve “investigar como este objeto foi produzido, tentando reconstituir sua razão de ser ou aparecer a nós segundo sua própria natureza, ao invés de determiná-lo em classificações e compartimentos fragmentados...” [6].
Concluída a pesquisa reuni os materiais e questões em três capítulos. No primeiro capítulo, “Reconhecendo os espíritas e suas instituições no Rio de Janeiro” apresento as características mais freqüentes entre os participantes de dois centros espíritas na cidade durante as décadas de 1930 e 1940. Procurei conhecer quem eram, de onde vinham, que posições sociais ocupavam, que opiniões políticas possuíam, como organizavam suas instituições, quem podia ingressar nos Centros espíritas, ao mesmo tempo em que tentei observar onde os Centros se situavam na cidade, qual a periodicidade de suas reuniões, que atividades desenvolviam dentro e fora do espaço da instituição espírita. Ampliando a investigação, busquei recuperar, também, um pouco das relações que os Centros travavam entre si e com as entidades federativas então existentes. Além disso, abordei algumas discordâncias de opiniões entre os espíritas, que se refletem na organização da Liga Espírita do Brasil, bem como nas tentativas de unificação de propósitos e práticas dos adeptos da Doutrina Espírita.
No segundo capítulo, “Vigilância e repressão policial a espíritas no Rio de Janeiro” abordo as ofensivas às atividades empreendidas pelos espíritas principalmente por parte das autoridades policiais. Acompanho também os efeitos dos Códigos Penais de 1890 e o de 1940, as perseguições a alguns médiuns e a repercussão pública dos casos e diferentes cobranças sociais para que a Polícia agisse contra os espíritas e suas instituições. Fiquei atento às Portarias policiais e suas exigências complexas que provocaram o fechamento de diversos Centros espíritas no Rio de Janeiro, à vigilância exercida pela Delegacia Especial de Ordem Política e Social nas Assembléias Gerais dos Centros e sua atuação na autorização, ou não, do funcionamento das instituições espíritas na cidade. Procurei recuperar, também, o processo de legalização do Centro Espírita Amor, Caridade e Esperança junto a Polícia. Termino o capítulo fazendo referência a episódios de tentativas de controle e repressão da Polícia na década de 1960, quando não esperava mais encontrar a ocorrência desse tipo de controle.
No terceiro capítulo, “E os espíritas resistem” abordo as estratégias de alguns espíritas para resistirem às pressões exercidas pela Polícia. Desde as opções do Centro Espírita Amor, Caridade e Esperança para registrar seus médiuns, a demora de alguns Centros no atendimento das exigências formuladas pelas autoridades ou mesmo para legalizarem suas instituições, até os pedidos de auxílio à Liga Espírita do Brasil, formulados por diretores de centros espíritas. Acompanhei alguns entendimentos dos espíritas com as autoridades policiais, nos seus esforços por prosseguirem com suas atividades doutrinárias, bem como recolhi informações sobre a suspensão ou a ocultação de atividades nos momentos de incertezas, as manifestações públicas do descontentamento dos espíritas através dos jornais, e os argumentos jurídicos utilizados na defesa dos médiuns perseguidos. Além disso, abordei algumas formas de organização dos espíritas a fim de enfrentarem os desafios postos pela Polícia, bem como algumas estratégias de boa convivência com ela. Por fim, procurei observar os efeitos práticos da Portaria policial de Abril de 1945, e as formulações da FEB com relação à uniformidade de práticas doutrinárias entre os espíritas, dentro dos esforços federativos de unificação.


[1] Usarei a palavra “Espiritismo” conforme seus adeptos, em letra maiúscula. Quando outros atores sociais façam uso distinto, será respeitada a grafia que adotem.
[2] CENTRO ESPÍRITA AMOR, CARIDADE E ESPERANÇA. Disponível em: http://www.ceace.org.br Último acesso em 14 de Junho de 2010.
[3] GRUPO DE CARIDADE DEUS, LUZ E AMOR. Sobre Nós. Disponível em: http://gcdeusluzeamor.webnode.com.br/sobre-nos Último acesso em 14 de Junho de 2010.
[4] VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Maria Aun. A Pesquisa em História. São Paulo: Editora Ática, 2002, p. 75. [1ª edição 1991]
[5] VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Maria Aun. Op. cit., p. 17.
[6] MARSON, Adalberto. In: SILVA, Marcos A. (org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1984, p. 49.

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